A privatização da Sabesp viola o direito à água?


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Por Lucas Costa e Bianca Tavares

22 de dezembro de 2023.

Turbas enfileiradas nas tribunas da Alesp protestavam enfaticamente, senão violentamente, contra um destino que já estava selado: era 6 de dezembro de 2023, apenas duas semanas atrás, a Sabesp, empresa concessionária de serviços de saneamento básico, foi privatizada em tumultuada sessão ordinária do Legislativo paulista, com aprovação folgada, dada a composição minoritária da oposição, integrada por partidos de esquerda e centro-esquerda, que, contrários ao projeto, eram e foram votos vencidos. Dois dias depois, o governador do estado, Tarcísio de Freitas (Republicanos), sancionou a proposta, que agora é lei. Afinal, a privatização da Sabesp compromete o compromisso tácito do Estado em assegurar o acesso à água? 

Em artigo recentemente publicado, mostramos que o acesso individual à água, em quantidade e qualidade suficientes, define um direito social muito recente, reconhecido pela ONU apenas em 2010. Apesar de seu reconhecimento em tratados internacionais, relativamente poucas constituições nacionais o acolheram de forma expressa. Na América Latina são doze países, mas o Brasil não é um deles (Tavares and Costa 2023). Embora o Estado detenha o monopólio sobre os recursos hídricos, fazê-los chegar aos indivíduos ainda não é uma de suas obrigações constitucionais.  

A entrega, para o setor privado, de serviços essenciais à própria sobrevivência, como a água, afeta a probabilidade de efetivação de direitos, que, além do mais, nem são entrincheirados por uma proteção constitucional? Os dados construídos a partir das pesquisas desenvolvidas no âmbito do DataCons, sugerem que sim. 

Sabesp é a sigla da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo, empresa responsável pelos serviços de saneamento básico no estado, incluindo a gestão e distribuição dos recursos hídricos que constituem o Sistema Cantareira, formado no Alto Tietê, conhecido por abastecer a região Metropolitana de São Paulo. Foi estabelecida em 1973, por meio da fusão de meia dúzia de empresas e autarquias. Desde então, até o início do recente processo de privatização, a empresa sempre possuiu o estado de São Paulo como seu único ou principal acionista. 

Em tese, a entrega de serviços públicos para a gestão privada não importa, necessariamente, em um revés em termos de efetivação do direito, seja ele constitucionalizado ou não. A Constituição brasileira regulamenta esta hipótese a partir do dispositivo da concessão, normatizado nos termos do seu artigo 175. Assim, mesmo direitos clássicos, oriundos da primeira onda de direitos, na esteira das revoluções liberais do século XVIII, como o direito de ir e vir, são entregues à iniciativa privada – é o exemplo das diversas rodovias geridas pela iniciativa privada no Brasil. Deixando de lado, desde já, a falácia de que garantias civis se definem como direitos negativos, cuja satisfação depende apenas da omissão do Estado, é certo que, na verdade, sua efetivação tem como condição a ação do Estado: no mundo moderno, ninguém vai e volta sem rodovias. 

Embora, em tese, a concessão da gestão de serviços públicos ao setor privado, mesmo aqueles associados aos direitos mais caros para as sociedades modernas, não seja incompatível com sua implementação efetiva, este parece ser o caso quando falamos sobre o direito ao acesso à água. Um estudo coordenado pelo Transnational Institute, na Holanda, em pareceria com a Universidade de Glasgow, na Escócia, por exemplo, demonstra que cidades que seguiram o mesmo caminho agora pavimentado por São Paulo, ou seja, a privatização da gestão dos recursos hídricos, estão voltando atrás, em um fenômeno conhecido como “remunicipalização” (Cumbers et al. 2022). São os casos de Paris, na França, Berlim, na Alemanha, Jacarta, na Indonésia, entre outros. Todas estas cidades, como agora o estado de São Paulo, seguiram uma mesma malfadada cartilha neoliberal, patrocinada pelo Banco Mundial, sob a alegação de ineficiência do setor público.  

A experiência de desestatização, como tem sido apelidado o processo de privatizações, inclusive da água, pelo marketing do governo bolsonarista, em São Paulo, foi um desastre no resto do mundo: invariavelmente, as tarifas foram substancialmente elevadas, reduzindo o acesso individual à água. Vale dizer, o acesso à água, que no Brasil não corresponde à uma garantia constitucional, em São Paulo, com a privatização da Sabesp, tende a se distanciar da condição de direito. 

Com efeito, a água, em uma perspectiva de ressurgimento do velho neoliberalismo dos anos 1980 e 1990, nos governos de nova direita espalhados pelo mundo, e, em particular, no caso deste artigo, no Palácio dos Bandeirantes, se tornou uma mercadoria, fomentando o que a literatura tem chamado de um Mercado da água, ou do “Ouro azul” (Martins 2012; Barlow 2009). A mercantilização da água estabelece um processo que ruma em sentido oposto ao da tendência de seu reconhecimento enquanto um direito universal. De fato, a falta de acesso à água configura-se em uma injustiça ambiental, nos termos definidos pelo sociólogo norte-americano, Robert Bullard, além de, claro, uma violação do próprio direito à uma condição de vida adequada, visto que a desigualdade de sua distribuição afeta principalmente os grupos sociais que se encontram em situação de vulnerabilidade socioeconômica, inseridos em um contexto de áreas sujeitas a inundações, desabamentos, próximas a lixões, ou locais de descartes, além da falta de saneamento básico. Bullard é conhecido, entre outras coisas, por cunhar o conceito de racismo ambiental. Trata-se de uma abordagem que considera a desigualdade de acesso às condições ambientais adequadas para um bem-estar social mínimo, em função das desigualdades raciais. Neste contexto, a privatização do saneamento básico e o possível encarecimento do acesso à água importaria em uma elevação dessas desigualdades. 

Com efeito, não é necessário ir muito longe. O próprio estado de São Paulo viveu o caos de uma crise hídrica, em 2014, que revelou os contornos trágicos da desigualdade na distribuição de água, traduzido pelos efeitos deletérios muito mais sensíveis nas periferias dos que nos bairros mais abastados. 

É verdade, no entanto, que privatização do saneamento básico não equivale à privatização da água, sobretudo em um contexto de concessão, como o que se dá no caso da Sabesp. Podem até ser, e frequentemente são, tendências que caminham juntas, mas, ainda assim, traduzem processos distintos. A experiência internacional, contudo, não pinta um bom cenário. Não há razão para acreditar que em São Paulo será diferente. Seu próprio governador, que antes da aprovação da proposta dizia que a tarifa iria baixar com a privatização, já recuou, admitindo que, na verdade, ela deverá subir (Capital 2023). Encarecer o acesso a um recurso essencial à própria sobrevivência, um recurso cujo acesso é condição para efetivação de praticamente todos os direitos fundamentais e constitucionalizados, começando pelo direito à vida, define uma preocupante violação dos direitos humanos. Nós do DataCons, por meio de nossas pesquisas, nos comprometemos a nos manter vigilantes, reportando os efeitos deste processo de privatização sobre a efetivação dos direitos sociais e econômicos. 

Barlow, M. 2009. Água, Pacto Azul: A Crise Global Da Água e a Batalha Pelo Controle Da Água Potável No Mundo. São Paulo: M. Books.

Capital, Carta. 2023. “Privatização Da Sabesp: Tarcísio Muda o Tom e Admite Que as Tarifas Ficarão Mais Caras Apesar Da Privatização.” Carta Capital, December 12, 2023.

Cumbers, Andrew, Bethia Pearson, Laura Stegemann, and Franziska Paul. 2022. “Mapping Remunicipalisation: Emerging Trends in The Global De-Privatisation Process.” https://publicfutures.org.

Martins, Rodrigo Constante. 2012. “De Bem Comum a Ouro Azul: A Crença Na Gestão Racional Da Água.” Contemporânea: Revista de Sociologia Da UFSCAR 2 (2): 465–88.

Tavares, Bianca Musketo, and Lucas Nascimento Ferraz Costa. 2023. “O Direito à Água Na América Latina.” In Semana de Pós-Graduação Em Ciência Política Da UFSCar, 11. São Carlos.