Cotas e Noções de Justiça: O caso das pessoas transgênero


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Matheus Pesce

Cotas são sempre um assunto espinhoso para se discutir, principalmente quando se quer pontuar as questões contraditórias ou problemáticas que as circundam. A criação de cotas passa por considerações e objetivos claros de um espectro político-ideológico, qual seja, aquelas opiniões mais afeitas aos problemas sociais e à necessidade de se estabelecer algum grau de justiça em vista de todas as injustiças produzidas ao longo da trajetória das sociedades. Diante disso, as cotas para pessoas transexuais são justas? Ora, depende da noção de justiça que se está utilizando.

Neste texto, buscarei apresentar os principais argumentos a favor da legitimidade das cotas para pessoas trans, dialogando com três teorias contemporâneas de justiça: a de John Rawls, a de Amartya Sen e a de Michael Sandel. O motivo da escolha desses autores não é porque apresentam visões completamente divergentes entre si, mas justamente porque seus olhares complementares ajudam a construir uma análise mais rica e plural, alinhada com os debates democráticos contemporâneos. Rawls, com sua proposta liberal baseada em princípios de equidade; Sen, com sua crítica ao formalismo abstrato e defesa da ampliação das liberdades reais; e Sandel, com sua valorização do pertencimento e da vida em comunidade.

Esse texto parte da premissa de que a justiça não é apenas uma ideia filosófica, mas algo que se realiza nas instituições, nas relações sociais e, principalmente, nas possibilidades concretas de existência das pessoas. E quando falamos da população transexual, é difícil negar que estamos diante de um grupo que historicamente enfrenta obstáculos reais para viver com dignidade. A exclusão, o preconceito, a marginalização, a violência simbólica e física – tudo isso compõe uma realidade que qualquer teoria da justiça séria precisa levar em conta. É a partir daí que as cotas se colocam como uma política pública possível, não para resolver todos os problemas, mas para mitigar algumas desigualdades e gerar novas oportunidades.Claro, isso não significa que a política de cotas seja isenta de críticas. Há tensões legítimas, principalmente quando se discute meritocracia, critérios técnicos, e o risco de deslegitimação institucional. Também é fato que há muita resistência social à implementação de políticas afirmativas para pessoas trans, o que indica que o problema não é apenas jurídico ou administrativo – ele é, antes de tudo, político e cultural. 

Justiça como equidade: Rawls e as cotas para pessoas transexuais

A teoria da justiça de John Rawls é uma das mais influentes do século XX e parte de uma pergunta bastante simples, mas poderosa: quais princípios de justiça escolheríamos para organizar a sociedade, se não soubéssemos em que posição estaríamos dentro dela? Esse experimento mental, conhecido como “posição original”, nos coloca sob o chamado “véu da ignorância”, onde não sabemos se seremos ricos ou pobres, homens ou mulheres, pessoas cisgênero ou transexuais, brancos ou negros. A ideia é que, se estivermos nessa condição de ignorância quanto à nossa identidade social, tenderemos a escolher princípios mais justos, pois não poderemos manipular as regras em benefício próprio.

Rawls propõe dois princípios básicos de justiça. O primeiro garante o máximo das liberdades fundamentais para todos: liberdade de expressão, de consciência, de associação, entre outras. O segundo princípio trata das desigualdades sociais e econômicas, e afirma que só são justificáveis se resultarem em benefícios para os menos favorecidos – essa é uma questão central e bastante interessante da teoria de Rawls: as sociedades devem possuir algumas estruturas injustas para que a justiça possa existir. É aqui que entra o chamado “princípio da diferença”, que se torna especialmente relevante quando falamos de cotas.Sob o véu da ignorância, qualquer pessoa razoável consideraria prudente garantir mecanismos que diminuam desigualdades estruturais. Afinal, se não sei se serei uma pessoa transexual vivendo em uma sociedade com altos índices de discriminação, violência e exclusão, faria sentido aceitar medidas que possam proteger e beneficiar esse grupo. As cotas, nesse contexto, aparecem como um instrumento legítimo de correção de desigualdades históricas.

No entanto, a aplicação prática da teoria rawlsiana exige mais do que esse raciocínio hipotético. Rawls reconhece que, para que os princípios de justiça sejam efetivos, eles precisam ser sustentados por um consenso sobreposto, ou seja, por um acordo entre diferentes doutrinas razoáveis dentro de uma sociedade plural. E aqui surgem os desafios. Como construir esse consenso em torno das cotas para pessoas trans quando boa parte da população ainda tem dificuldade em reconhecer sua legitimidade como sujeitos políticos? Como superar os preconceitos estruturais, muitos deles enraizados em tradições religiosas ou conservadoras, que enxergam a existência trans como uma ameaça ou uma anomalia?

A resposta não é simples. Rawls, em seus textos mais tardios como “Liberalismo Político”, reconhece que há limites para o que pode ser alcançado apenas com base na razão pública. A grande maioria das opiniões presentes na sociedade  – fruto de essencialismos, preconceito, religião ou qualquer tipo de fanatismo – não são razoáveis e, portanto, não devem ser levadas em conta nos processos de deliberação democrática. Isso incluiria, por exemplo, visões que negam a dignidade de pessoas transexuais ou que defendem sua exclusão sistemática. Dessa forma, é possível afirmar que, no arcabouço rawlsiano, as cotas para pessoas trans seriam justificáveis por dois motivos centrais: primeiro, porque visam garantir melhores condições para os grupos menos favorecidos; segundo, porque podem ser sustentadas por concepções razoáveis de justiça, mesmo em sociedades pluralistas. A dificuldade, como sempre, está na prática. O consenso sobreposto que Rawls imagina como base para a estabilidade de uma sociedade justa ainda é difícil de alcançar quando o preconceito continua sendo um componente ativo da cultura política. Mesmo assim, a teoria fornece um alicerce importante para que possamos defender políticas afirmativas com base na razão e no ideal democrático.

Liberdade e capacidades: Amartya Sen e a justiça na prática

Se Rawls nos oferece uma teoria normativa poderosa, baseada em princípios hipotéticos de justiça, Amartya Sen parte de um ponto de vista mais prático e imediato. Em sua obra Desenvolvimento como Liberdade, ele propõe que a justiça não deve ser pensada apenas como um arranjo institucional ideal, mas como a ampliação das liberdades reais das pessoas. O foco, para Sen, está naquilo que as pessoas são efetivamente capazes de fazer e ser – o que ele chama de capabilities (capacidades). E é com base nisso que podemos avaliar se uma sociedade é justa ou não, e qual caminho ela deve seguir para ser. No caso das pessoas transexuais, essa abordagem faz muito sentido. Não se trata apenas de saber se elas têm, formalmente, o direito de frequentar uma universidade ou disputar um cargo público. A pergunta que importa é: elas têm as condições reais para isso? Elas conseguem acessar, de fato, as oportunidades disponíveis? Possuem a base mínima de liberdade para fazer escolhas significativas sobre suas vidas?

A resposta, na maioria das vezes, é negativa. Quando olhamos para a realidade social das pessoas trans, especialmente em países como o Brasil, vemos um cenário marcado por exclusão, violência, evasão escolar, rejeição familiar e precarização do trabalho. Ainda que haja avanços jurídicos e simbólicos importantes nos últimos anos, as possibilidades reais de vida continuam extremamente limitadas. Isso, na linguagem de Sen, significa que há um déficit grave de justiça e um impedimento deste grupo desenvolver suas capacidades. É nesse contexto que as cotas aparecem como um instrumento de ação corretiva. Elas não são um fim em si mesmas, mas uma forma de ampliar as capacidades das pessoas trans, oferecendo-lhes uma chance de romper com os ciclos de exclusão. Em outras palavras, a partir desse ponto de vista, cotas são uma tentativa de garantir que essas pessoas tenham de fato a liberdade de desenvolver seus projetos de vida, e não apenas a liberdade formal, que muitas vezes apenas reforça desigualdades já existentes.

Um dos pontos fortes da teoria de Sen é que ela reconhece que não existe uma única forma de justiça válida para todos os contextos, portanto, as escolhas públicas baseadas em princípios de justiça devem variar de país para país. Cada sociedade deve decidir, democraticamente, o que significa promover justiça, levando em consideração sua própria história, cultura e estrutura social. Isso significa que, em um país como o Brasil – onde a marginalização de pessoas trans é particularmente brutal –, políticas como as cotas podem ser não apenas justificáveis, mas urgentes e necessárias.

Sen também rejeita a ideia de que justiça se resume a procedimentos ou regras abstratas. Para ele, o que importa é a comparação entre estados reais de vida. Ou seja, se há uma alternativa claramente melhor para um grupo historicamente oprimido, ela deve ser buscada. Não se trata, portanto, de garantir igualdade de oportunidades apenas no papel, mas de avaliar as condições reais de acesso e permanência. Ao adotar essa perspectiva, vemos que o mérito, frequentemente invocado contra as cotas, precisa ser repensado. O mérito, para Sen, só faz sentido quando todos têm condições razoavelmente similares de competir. Fora disso, a ideia de mérito serve mais como uma desculpa para manter o status quo do que como critério justo de avaliação. Se as pessoas trans estão em desvantagem estrutural desde o nascimento, é incoerente exigir delas o mesmo desempenho sem oferecer antes uma base mínima de igualdade.

Portanto, sob a lente de Amartya Sen, as cotas para pessoas transexuais se justificam não apenas como uma questão de reconhecimento simbólico, mas como uma estratégia real de ampliação das liberdades individuais. Elas são, na verdade, um passo concreto rumo à justiça substantiva – aquela que se importa com o que as pessoas conseguem ser e fazer, e não apenas com a normatividade codificada em determinado país.

Pertencimento, bem comum e reconhecimento: o olhar comunitarista de Michael Sandel

Se Rawls parte de um ideal liberal e Sen nos convida a olhar para a realidade concreta das pessoas, Michael Sandel vai por outro caminho: ele nos provoca a pensar a justiça a partir dos vínculos sociais, dos valores compartilhados e do sentido de pertencimento. Em sua crítica ao liberalismo, Sandel defende que não podemos separar completamente o eu das comunidades às quais pertencemos. A justiça, portanto, não pode ser definida sem levar em conta a história, a cultura e os valores de uma sociedade. Essa perspectiva é especialmente útil quando pensamos na questão das cotas para pessoas transexuais, porque ela nos obriga a olhar não apenas para os indivíduos em si, mas para o tecido social do qual eles fazem parte – ou, muitas vezes, do qual são sistematicamente excluídos.

Sandel argumenta que uma sociedade justa não é aquela em que cada um persegue seus próprios interesses isoladamente, mas aquela em que os membros se reconhecem mutuamente como partes de um projeto comum. Nesse sentido, a justiça está intimamente ligada ao bem comum. E o bem comum, por sua vez, não é algo fixo ou abstrato – ele se constrói no debate público, nas instituições e nas práticas sociais cotidianas.

Quando uma sociedade decide implementar cotas para pessoas trans, ela está, de certo modo, reconhecendo que esse grupo tem sido historicamente excluído da esfera pública e que isso fere o ideal de pertencimento mútuo. Está dizendo que não é possível construir um projeto de sociedade justa se determinadas pessoas são sistematicamente deixadas de fora. A política de cotas, portanto, se apresenta como uma forma de reconstruir laços sociais que foram rompidos pelo preconceito, pela violência e pela ignorância.

Claro, Sandel reconhece que toda política pública está sujeita a conflitos morais. E nesse ponto, ele diverge de Rawls. Para Sandel, não é possível dissociar completamente a política da moral. A ideia de neutralidade do Estado frente às concepções de bem, defendida por muitos liberais, é ilusória. Toda política carrega valores. Portanto, é legítimo que a sociedade discuta, por exemplo, se deve ou não usar mecanismos como as cotas para combater desigualdades. Mas essa discussão deve ocorrer à luz de princípios morais compartilhados, e não apenas de cálculos individuais de interesse.

Nesse sentido, defender cotas para pessoas trans não é apenas uma questão de eficiência social ou correção institucional. É, sobretudo, uma afirmação política e ética de que esse grupo pertence à comunidade política. É um gesto simbólico que afirma: vocês têm lugar aqui. Vocês importam. Vocês fazem parte de nós. Sandel também nos ajuda a compreender por que algumas pessoas reagem tão intensamente contra esse tipo de política. Para ele, o ressentimento social muitas vezes surge quando certos grupos se sentem esquecidos ou desvalorizados pelas instituições públicas. Assim, políticas de reconhecimento, como as cotas, precisam ser acompanhadas de um esforço coletivo para reconstruir o sentido de comunidade e explicar, com clareza, que a justiça não é um jogo de soma zero. Reconhecer o direito de um grupo vulnerável não significa negar o valor dos demais – pelo contrário, fortalece o próprio tecido democrático ao incluir quem estava à margem.

Portanto, a partir da visão de Sandel, as cotas para pessoas transexuais não apenas são defensáveis, como se tornam uma forma concreta de reconstruir o ideal de justiça como pertencimento. Elas são, ao mesmo tempo, uma política pública e um gesto ético. Um chamado à convivência plural num mundo que ainda insiste em excluir. Entretanto, como pensar o funcionamento dessa teoria em um país como o Brasil? Existe alguma possibilidade de haver um consenso acerca de um tema desta magnitude? 

Acredito de fato que justiça, assim como varia ao longo do tempo, se apresenta de maneira ímpar em cada país ou região. Os horizontes de justiça que se apresentam nas escolas de pensamento ocidentais – norte-americana e europeia – nos levam a um lugar em que as cotas seriam justas na medida em que corrigem desigualdades, mas do ponto de vista das crenças sociais, que se manifestam na maioria da população, as cotas não são bem vindas, e grande parte das políticas de legitimação e defesa dos direitos das pessoas transexuais são feitas por autarquias ou cortes judiciais, dificilmente se concretizam através de procedimentos legislativos com participação ampla. Portanto, apesar de ser justo do ponto de vista teórico e social mais amplo, são injustos se partirmos apenas do princípio democrático. É claro que existem instituições dentro das democracias que possuem o objetivo de estabelecer um contrapeso em relação ao princípio da maioria, contudo, de qualquer forma, a questão das cotas é um tema complicado que demanda bastante atenção, principalmente em um ambiente político mundial onde o extremismo se tornou comum.

Mérito, resistência e legitimidade

Até aqui vimos que as cotas para pessoas transexuais podem ser justificadas sob diversas teorias de justiça. Rawls, com seu princípio da diferença e a ideia de um consenso razoável, Sen, com sua proposta de ampliar as capacidades reais das pessoas, e Sandel, com a noção de pertencimento e bem comum. A teoria, como se costuma dizer, parece sólida. Mas a prática é sempre mais desafiadora. É importante reconhecer que a política de cotas não se dá no vácuo. Ela opera dentro de instituições concretas – universidades, concursos públicos, programas de emprego – e se choca com realidades culturais, econômicas e administrativas. Um dos argumentos mais comuns contra as cotas é a ideia de que elas ferem o princípio do mérito. E se uma pessoa mais preparada ficar de fora por conta de uma vaga reservada?. À primeira vista, esse questionamento parece razoável. Afinal, o mérito tem sido, por décadas, um dos pilares do discurso moderno sobre igualdade de oportunidades. O problema é que o mérito, quando analisado mais de perto, não é tão neutro assim. Em uma sociedade marcada por desigualdades estruturais, o que consideramos “mérito” muitas vezes é apenas o reflexo das condições materiais e simbólicas de que cada um dispõe. Quem teve acesso a uma boa escola, segurança emocional, apoio familiar e uma rede de afeto, naturalmente chega mais preparado a um processo seletivo. Mas isso não significa, necessariamente, que essa pessoa seja “melhor” do que aquela que, apesar de todas as dificuldades, conseguiu chegar até ali.

A crítica que se deve fazer não é ao mérito em si, mas ao uso cego e descontextualizado do mérito como critério único de seleção. As cotas não negam a importância da qualificação, mas apontam que, em determinadas situações, é necessário corrigir as distorções de origem. E, convenhamos, quando falamos da população transexual, essas distorções são especialmente agudas. Outro desafio relevante é o da resistência institucional. Muitas universidades e empresas que adotam cotas para pessoas trans o fazem a partir de decisões internas, sem obrigatoriedade legal. Isso significa que a política pode ser frágil, instável e sujeita a mudanças repentinas, dependendo do humor político ou da pressão externa. Além disso, a ausência de regulamentação clara pode gerar problemas na aplicação, com critérios pouco transparentes, ausência de acompanhameto e falta de suporte para a permanência das pessoas selecionadas.

Há também o risco de deslegitimação simbólica. Quando um grupo social é constantemente exposto à ideia de que está “tomando o lugar de alguém” por conta de uma política afirmativa, tende a internalizar esse discurso ou a sofrer os efeitos do estigma. É como se as pessoas trans, ao entrarem em uma universidade por cotas, carregassem consigo uma dúvida permanente sobre sua própria capacidade. Isso é injusto, e mostra que a política de cotas, por si só, não basta: ela precisa vir acompanhada de um ambiente institucional acolhedor, de políticas de permanência e de narrativas públicas que fortaleçam o reconhecimento, e não o ressentimento.

Outra questão que deve ser considerada é o fato de que o foco em recortes que privilegiam a identidade pode produzir uma fragmentação das lutas sociais em contextos muito desiguais de escassez de recursos. Escolher destinar recursos e cargos em função da identidade dos indivíduos pode desorganizar a lógica de justiça redistributiva. Quem deveria ser incluído em, digamos, um programa de pós-graduação em uma universidade pública: uma estudante de classe A cujo ensino foi feito completamente em uma instituição privada, ou um estudante de classe E que fez todo o ensino básico em instituições públicas?

Talvez para respondermos essa pergunta seria necessário recorrermos a preferências pessoais ou escolher qual das minorias seriam menos privilegiadas. O fato é que não há a possibilidade de estabelecer cotas para todas as minorias sociais, a manifestação das ações políticas perpassam escolhas que devem ser feitas para evitar o descolamento entre a realidade fiscal, social e política e as reivindicações em prol de justiça. As cotas para pessoas transexuais enfrentam resistências legítimas, dilemas éticos e desafios práticos. Mas também representam uma resposta concreta, embora imperfeita, a uma realidade profundamente desigual. Não resolverão todos os problemas, é verdade. Mas negar sua legitimidade é, em muitos casos, negar também a existência de uma parte importante da população. Portanto, o impasse está posto. De fato as cotas podem ser fundamentais para a efetivação e ampliação das liberdades individuais, mas devem ser colocadas sob a lupa das possibilidades políticas de uma dada nação.

Considerações finais

Ao longo deste texto, percorremos diferentes caminhos teóricos para pensar uma mesma pergunta: cotas para pessoas transexuais são justas? Rawls nos deu uma lente liberal igualitarista, baseada na ideia de que justiça é aquilo que escolheríamos se não soubéssemos quem somos. Sen nos levou a olhar para as liberdades reais que as pessoas possuem, para além das regras formais. E Sandel nos fez pensar que justiça tem a ver com pertencimento, com o reconhecimento mútuo entre os membros de uma comunidade. Cada autor, à sua maneira, ajudou a iluminar o debate.

A partir dessas reflexões, é possível dizer que sim, cotas para pessoas trans são justas – pelo menos quando compreendidas como parte de um esforço mais amplo de inclusão, reparação histórica e fortalecimento democrático do ponto de vista teórico. Elas não são um privilégio, mas uma tentativa de equilibrar minimamente um jogo que, desde o começo, é desigual. E mais do que uma medida técnica, as cotas têm uma dimensão simbólica e política importante: elas dizem a essas pessoas que elas existem, que importam, que têm direito a estar onde sempre foram impedidas de estar.

É claro que isso não significa que as cotas sejam uma solução mágica. Elas enfrentam desafios reais: resistência social, precariedade institucional, tensões com o discurso da meritocracia e riscos de estigmatização. Também não se pode perder de vista que cotas não bastam sozinhas – é preciso políticas de permanência, formação de servidores e docentes, criação de redes de apoio, campanhas de conscientização e, sobretudo, mudança cultural.

Outro ponto importante é reconhecer que a naturalização de uma política leva tempo. No Brasil, o debate sobre cotas raciais passou por momentos turbulentos, e só recentemente começou a ser mais aceito por setores da sociedade. O mesmo caminho pode se dar com as cotas para pessoas trans: resistência no começo, depois aceitação, e finalmente a construção de um novo senso comum. Mas isso depende de persistência, de boas práticas institucionais e, principalmente, de uma narrativa pública que explique por que essas medidas são necessárias e o que elas buscam transformar.

Por fim, é preciso dizer que o compromisso com a justiça é bastante complicado. Ele exige escolhas difíceis, renúncias, confrontos com privilégios e, muitas vezes, um reposicionamento da própria identidade. Em um mundo tão desigual, fazer justiça não é apenas aplicar uma regra, mas reconhecer que há feridas abertas que não cicatrizam com boas intenções. É preciso ação, política, coragem e comedimento. A defesa das cotas para pessoas transexuais não é, portanto, uma concessão. É reconhecer que a democracia só se realiza plenamente quando todos podem participar dela em igualdade de condições. E que, para isso, às vezes é necessário dar passos firmes na direção contrária da exclusão.

Apesar disso, ainda há muito a ser discutido sobre as escolhas políticas nos países. A realidade é viva e intensamente mutável. O humor nacional e internacional têm variado muito e as escolhas políticas internacionais têm conduzido a história a caminhos bastante complicados. A lógica de exclusão, apesar de ser formalmente rejeitada, é reiterada por diversos discursos. Como toda política pública, as cotas são escolhas tomadas por atores relevantes em determinadas instituições em determinado período histórico e sua legitimidade só pode ser concebida dentro de um ambiente particular. É necessário escolher quais grupos devem ser escolhidos como legítimos a receber tais ‘’benesses’’, e essa tarefa eu deixo para os atores políticos relevantes.

Referências Bibliográficas

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SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

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