Felicidade Interna Bruta (FIB): O objetivo é alegria, não dinheiro


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Por Matheus Pesce

Nas últimas décadas o crescimento econômico se tornou o principal foco da vida das pessoas e dos países ao redor do mundo. Caso achássemos uma lâmpada mágica e com ela viessem três pedidos, apenas, com certeza um deles estaria relacionado ao sucesso financeiro. Algumas pessoas poderiam escolher de cara um trilhão de dólares, outras poderiam cogitar carros extremamente caros, casas construídas ou mesmo viagens e comida infinitas, questões que dinheiro ilimitado com certeza resolveria. Nesse ambiente, o lucro e o sucesso financeiro representam o ideal de felicidade para a maioria das pessoas. Questões que em outros momentos significavam felicidade caíram por terra sob a nova lógica que as sociedades vivem atualmente. O ‘’sonho americano’’, que influencia grande parte da população brasileira – para ser minimalista -, tem como principal característica o poder de compra, a possibilidade de, através do sucesso econômico, conquistar bens materiais que nas sociedades modernas significam poder e geram respeito.

            É claro que dentro do regime econômico em que vivemos o dinheiro é fundamental para a existência das pessoas, muitas das quais vivem unicamente para trabalhar e vice-versa. A situação em que as sociedades se encontram, de ampliação da desigualdade social, de perda de direitos que considerávamos irrevogáveis e de radicalização da vida cotidiana, produz uma situação em que o dinheiro se torna o objeto de salvação. O sucesso econômico individual se coloca como uma garantia de que as futuras gerações não precisarão sofrer com as trágicas tendências que se colocam nas sociedades, hoje. Logo, o dinheiro é indispensável para uma vida minimamente digna. Entretanto, o sucesso econômico é suficiente para garantir que as pessoas sejam realmente felizes? Quais seriam os possíveis critérios para medir a felicidade das pessoas?

            Foi pensando nisso que os líderes do Butão, um pequeno país montanhoso do sul asiático, decidiram que a felicidade não deveria ser medida apenas pelo crescimento econômico, cujo principal índice é o PIB (Produto interno bruto). Em vez disso, em 2008 foi incorporado à constituição um índice que mede a Felicidade Interna Bruta (FIB) dos cidadãos do país. Esse conceito foi cunhado e introduzido pelo rei Jigme Singye Wangchuck do Butão, em 1972, demonstrando que uma das prioridades no horizonte de objetivos para o país era o bem-estar social e espiritual da população, ao invés apenas do crescimento econômico. Essa perspectiva corrobora demasiadamente com o horizonte de justiça de Amartya Sen, importante filósofo e economista ganhador do Nobel em 1998. Na seminal obra ‘’Desenvolvimento como Liberdade’’, Sen argumenta que a importância e qualidade da riqueza não está nos bens que ela compra, mas nas possibilidades sociais que ela gera. Um país cujo desenvolvimento nacional é restrito ao crescimento econômico seria insuficiente e injusto do ponto de vista social.

            Diferentemente de outras métricas tradicionais, o FIB avalia diversas dimensões da qualidade de vida das pessoas e orienta as políticas governamentais no sentido de garantir um equilíbrio entre o desenvolvimento econômico, bem-estar social, sustentabilidade ambiental e a preservação da cultura e tradições locais. Esse índice fornece ao país um importante conjunto de indicadores que facilitam e orientam a tomada de decisões para o desenvolvimento de suas metas sociais. O FIB é composto por nove dimensões, sendo elas:

  • Bem-estar psicológico
  • Uso do tempo
  • Vitalidade da comunidade
  • Cultura
  • Saúde
  • Educação
  • Diversidade do Meio ambiente
  • Padrão de vida
  • Governança

Cada dimensão possui índices variáveis, totalizando 72 indicadores que contribuem para uma aferição detalhada da percepção e qualidade de vida do cidadão butanês. As pesquisas de opinião para medir a FIB são realizadas a cada cinco anos pelo centro de estudos do Butão (Centre for Bhutan Studies – CBS), permitindo análise de tendência de longo prazo e avaliando o impacto das medidas governamentais sobre o bem-estar da população.

BEM-ESTAR PSICOLÓGICOECOLÓGICOS SAÚDEEDUCAÇÃOPADRÃO DE VIDAUSO DE TEMPOVITALIDADE COMUNITÁRIABOA GOVERNANÇACULTURAIS
Questionário geral sobre saúdePoluição dos riosAutoRelatos do estado de saúdeNível de educaçãoRenda domiciliarTotal de horas trabalhadasSentimento de confiança em relação aos vizinhosPerformance do Governo Central em reduzir as diferenças entres ricos e pobresQual a primeira língua a falar
Frequência de oraçõesErosão do soloLongo prazo de deficiênciaTaxa de alfabetizaçãoRenda suficiente para suprir as necessidades diáriasQuantidade de horas de sonoVizinhos se ajudam dentro da comunidadePerformance do Governo Central no combate à corrupçãoFrequência com que brinca com jogos tradicionais
Frequência de meditaçãoMétodo de eliminação de resíduosSaúde nos últimos 30 diasCapacidade de compreensãoInsegurança alimentar Trabalho de intercâmbio com os membros da comunidadeDireito de liberdade de expressão e opiniãoAptidão para Zorig Chusum
Carma na vida cotidianaespécies de plantas e animaisÍndice de Massa CorpóreaHistórico da alfabetizaçãoPossuir casa própria Socialização com os amigosNão discriminação baseada em raça, sexo, religião, língua, política ou outras formas Importância da disciplina (Drig) para as crianças
EgoísmoCercas vivas (árvores) ao redor de sua fazenda ou casaConhecimento sobre as formas de transmissão do vírus HIV/Aids Quantos quartos Os membros de sua família realmente se cuidam entre siConfiança nos Ministérios Centrais Ensinar as crianças a importância da imparcialidade para com ricos, pobres, diferente estatuto etc.
Inveja Tempo de amamentação exclusiva para as crianças Comprar roupas de segunda mão Os membros de sua família discordam muito entre siConfiança na administração dzongkhagConhecimento da máscara e de outras festas realizadas em tshechus
Calma A distância percorrida a pé até o centro de saúde mais próximo Dificuldade em contribuir para as festas da comunidade Existe muita compreensão em sua famíliaConfiança na imprensa Importância da reciprocidade
Compaixão    Postergar reparos urgentes e manutenção de seu ambiente familiar (casa) Sua família tem recursos reais para lhe proporcionar conforto Matar
Generosidade     Quantidade de parentes que vivem na mesma comunidade Roubar
Frustrações     Vítima de crime  Mentir
Consideração de cometer suicídio     Sentimentos de segurança com relação a danos humanos Mau comportamento sexual
      Sentimento de inimizade na comunidade  Quantidade de dias que reservou durante o ano para os festivais da comunidade
      Quantidade de dias dedicados ao voluntariado  
      Quantidade de doações financeiras  
      Disponibilidade para apoio social  

Fonte: Elaboração do Autor

Um aspecto interessante do FIB é sua ênfase no equilíbrio entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental. Enquanto muitos países possuem uma tendência a sacrificar o meio ambiente ou a cultura local em nome do desenvolvimento econômico, o Butão impõe limites. Por lei, 60% do território deve permanecer coberto por florestas. Projetos de infraestrutura, como hidrelétricas, só são aprovados se não ameaçarem ecossistemas sensíveis. Além disso, a cultura butanesa, com suas tradições budistas e vestimentas típicas, é protegida de forma quase militante. Turistas, por exemplo, pagam uma taxa diária alta para visitar o país, e o governo controla rigorosamente o tipo de influências externas que entram no território.

A saúde mental também ganha destaque no FIB, algo raro em políticas públicas globais. Em entrevista¹ concedida por Thakur Powdyel, ex-ministro da educação do Butão, à TV Senado em 2022, é explicado que o governo tem de ter profissionais para oferecer apoio psicológico em comunidades rurais, onde o acesso a serviços básicos ainda é limitado. Não se trata apenas de tratar doenças, mas de promover resiliência emocional. Um agricultor butanês, por exemplo, pode não ter um carro ou um smartphone, mas é incentivado a participar de grupos comunitários que fortalecem seu senso de pertencimento.

Nossa percepção da realidade se transformou drasticamente nas últimas décadas. A indústria da tecnologia, por exemplo, criou aparelhos e gadgets que modificam a maneira com que nos relacionamos com o mundo que nos circundam. Além disso, os empregos que antes possuíam uma carga de trabalho, apesar de exaustiva, previsível, hoje, as pessoas são requisitadas a possuírem quase que infinitas habilidades. É necessário saber falar inglês, utilizar o excel, saber se comunicar com um público determinado ou precisa cumprir jornadas longuíssimas de trabalho sem um contrato assinado.  Em vista das bruscas mudanças que ocorrem na realidade das populações, os problemas psicológicos se tornaram, infelizmente, centro da atenção e da vida de muitas pessoas.


¹. https://www.youtube.com/watch?v=bRoPCIO7clI

A depressão, o burnout ou a ansiedade se tornaram rotineira nos jornais regionais ou mesmo nos nossos ciclos de amigos. Os altos índices de estresse do mundo rotineiro adoecem milhões de pessoas, mostrando que o cuidado com o bem-estar mental e emocional pode ser o único caminho para evitar os graves problemas que atormentam grande parcela da população. Logo, a importância atribuída para o bem-estar da população na constituição do Butão pode ser um caminho para algumas sociedades ocidentais lidarem com esses problemas catastróficos que vêm impactando-as imensamente.

            Do ponto de vista constitucional, portanto, as escolhas políticas dos atores do país produziram um leque de direitos sociais e econômicos que supera em quantidade e qualidade a média global,. O artigo nove da constituição de 2008 garante a promoção social de condições que persigam o crescimento da felicidade interna bruta do país e diversas outras garantias relacionadas ao trabalho, saúde, educação, lazer e bem-estar (Butão, 2008, p.14). Os indicadores levam em consideração o uso do tempo, a saúde nos últimos 30 dias ou mesmo a quantidade de mentiras dos cidadãos, fatores que podem gerar conclusões interessantes sobre a realidade social e cultural do país e, consequentemente, maneiras para lidar com os problemas.

            Se a liberdade e felicidade, para Sen, está relacionada com a ampliação das possibilidades dos cidadãos, então me parece que o Butão, sob essa perspectiva, está no caminho correto. Indicadores baseados unicamente no crescimento econômico não traduzir a qualidade de vida dos cidadãos justamente porque a maneira com que a economia mundial está organizada favorece a acumulação de recurso financeiro para aqueles grupos, indivíduos ou empresas que já possuem uma grande quantidade de recursos. Não é como se o produto interno dos países fosse dividido igualmente, ou de qualquer maneira, entre os cidadãos de uma determinada comunidade. Assim, criar um sistema que necessita da participação direta dos cidadãos, apontando como se sentem em relação a inúmeros aspectos da realidade que o circundam parece muito mais fidedigno, de fato, do que índices que medem unicamente o crescimento econômico.

            Podemos considerar a felicidade como algo extremamente subjetivo, essa consideração pode ser, inclusive, uma das principais críticas ao FIB. Jovens butaneses podem se sentir incomodados com a organização do país e com o formato desse indicador. É natural que novas gerações se contraponham com gerações passadas, assim como é natural, sob a ótica ocidental, que as pessoas tendam a preferir um regime de liberdade, onde o principal objetivo é realização dos sonhos particulares, que perpassa necessariamente pelo acúmulo de recursos. Ou seja, é evidente (1) que é extremamente difícil aferir o grau de felicidade de uma pessoa, e (2) que haverá opiniões contrárias aos objetivos propostos pelo governo, quais sejam, alcançar o bem-estar espiritual e ir na contramão de um crescimento econômico simplista. Entretanto, tendo em vista os problemas gerados pelo foco no desenvolvimento econômico, a organização da constituição aliado ao FIB pode ser bastante frutífera.

            Por fim, devemos levar em consideração o fato do Butão não estar organizado sob um regime democrático. Nós, ocidentais, consideramos o melhor e mais justo sistema de governo a democracia, em função dela sanar um problema que consideramos principal para estados nacionais modernos, qual seja, o fato do pluralismo. Outra crítica contundente, portanto, estaria relacionada com o sistema de governo do Butão. Um país que não possui um regime que representa minimamente os interesses da população, do ponto de vista das leis, não pode garantir uma felicidade plena e real. Acerca disso devemos levar em consideração dois pontos: (1) a crítica do Butão não possuir um sistema democrático só pode ser feita por aqueles que creem que o sistema democrático é o melhor; (2) a teoria democrática exerce forte influência no pensamento político ocidental justamente porque foi através desse regime que o sistema capitalista pôde se legitimar ao longo do século XX.

            Como apontado por Offe (1984), ao longo do século XX o capitalismo e a democracia encontraram um modo para não se excluírem, qual seja, um método que combinou a lógica do capital com um sistema de representação política. A combinação entre democracia e capitalismo produziu a competição partidária, um método de escolha de representantes que passa pelo crivo do capital. A lógica de financiamento de campanhas, de criação de novas bases partidárias e de burocratização dos partidos políticos são a representação de que o capital passou a exercer influência no regime democrático. Em um ambiente globalizado, as críticas ao Butão estão relacionadas a parâmetros e horizontes que se colocam internacionalmente, via tratados ou acordos internacionais. Consideramos, de fato, que o sistema democrático é aquele que melhor representa os interesses de uma população e que melhor estabelece algum grau de justiça social, justamente porque estou me baseando em concepções de justiça política, ou seja, em tradições que consideram que a tomada de decisão social justa deve partir do aglomerado de perspetivas presentes em uma dada sociedade. Contudo, essa perspectiva foi construída através de ideais e valores que se consolidaram na cultura e tradição da ciência política, e pode não estar de acordo com outras perspectivas religiosas, culturais ou de justiça, encontradas aos montes em outras regiões do mundo.

            As dificuldades para viabilizar esse tipo de índice variam de acordo com as características de cada nação. As culturas dos estados nacionais estão modificando-se cotidianamente, produzindo culturas híbridas que podem possuir características de inúmeras outras regiões, bem como outras religiões, tradições filosóficas ou horizontes de justiça. Portanto, aferir respostas ‘’corretas’’ para aquilo que se está considerando felicidade pode ser bastante complexo, principalmente para países de grandes dimensões. Portanto, apesar de considerarmos o FIB um ótimo índice para medir o grau de bem-estar ou de felicidade do Butão, pode não ser muito eficiente caso seja transportado para outros países ou regiões do mundo. 

            Referências Bibliográficas

BHUTAN. Constituição do Reino do Butão, 2008. Disponível em: https://www.constituteproject.org/constitution/Bhutan_2008.pdf. Acesso em: 17 mar. 2025.

FIB2030. Sobre o FIB. Disponível em: https://www.fib2030.com.br/sobre-o-fib. Acesso em: 14 mar. 2025.

OXFORD POVERTY & HUMAN DEVELOPMENT INITIATIVE (OPHI). Gross National Happiness. Disponível em:https://ophi.org.uk/gross-national-happiness. Acesso em: 15 mar. 2025.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

YOUTUBE. Entrevista com Thakur S. Powdyel. 2023.. Publicado pelo canal TV Senado. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=bRoPCIO7clI. Acesso em: 17 mar. 2025.