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“Não existe almoço grátis”, frase que ficou famosa especialmente após ser usada como título de uma obra do libertarianista norte-americano Milton Friedman (Friedman 1977), traduz a ideia segunda a qual tudo tem um preço, ainda que não perceptível em um primeiro momento. Por exemplo, é comum dizer que plataformas de rede social, como o Facebook e o Twitter (atual X), não cobram para seu acesso porque, na verdade, seus usuários são os produtos. “Se você não paga pelo produto, você é o produto”. Com efeito, não é segredo que o modelo de negócio destas grandes corporações funciona a partir da comercialização de dados relacionados às preferências e interesses de seus usuários para fins publicitários. Ou seja, elas são apenas aparentemente gratuitas, pois ao acessá-las você está consentindo com o uso, para fins de propaganda, dos dados gerados pela sua interação. Os exemplos são inesgotáveis, todos confirmando como verdadeira a premissa libertária segunda a qual não existe almoço grátis, ainda que as conclusões que se derivam dela possam ou devam ser questionadas.
Quando falamos em direitos, muitas vezes esquecemos dos seus custos. Contudo, todos os direitos, por definição, impõem custos a alguém ou alguéns. Mesmo os mais incontroversos, como o direito à vida. Afinal, se há o direito à vida, há a imposição de não matar, um ônus mais do que aceitável para fins de viabilizar a vida em sociedade e a superação de um permanente estado de natureza, de uma guerra de todos contra todos. Sem contar que, para além do efeito de viabilizar condições mínimas de convivência social, matar (aquilo que se proíbe) é, em quase todas as sociedades e por quase todos os indivíduos que delas fazem parte, moralmente condenável. Mas há outros direitos que, embora importantes em si mesmos, impõem ônus tais que justificam o questionamento sobre sua legitimidade. A pergunta que temos que fazer ao assegurar um direito é: os custos que ele impõe são justificados pelas necessidades que ele atende?
Esta é, em síntese, a ideia por trás da teoria dos interesses, elaborada pelo filósofo israelense Joseph Raz (Raz 1986). Ela pode ser definida a partir de uma elegante fórmula: X tem o direito P em face de Y, em razão de Z. X é o sujeito beneficiário do direito, P o direito por ele reivindicado, Z traduz o interesse deste direito para X, e Y identifica sobre quem recai os deveres implícitos ou explícitos como condição para satisfação do direito.
Podemos dizer que se P for o almoço, X é quem o come, Y é quem o paga e Z traduz a importância do direito ao almoço para X, ou seja, a saciação de sua fome. Direitos, portanto, existem para satisfazer necessidades, à liberdade, à honra, à privacidade, à fome. E o meio de satisfazê-las é a imposição de dever a terceiros.
A partir desta noção, a filósofa francesa Cécile Fabre propõe que os direitos que costumamos acreditar ter, na verdade são direitos prima facie (à primeira vista) (Fabre 2004). Isto porque só temos o direito de fato quando o dever que ele impõe a terceiros for justificado pela importância da necessidade que reivindicamos satisfazer. Ou seja, pode ocorrer de termos um aparente direito a alguma coisa, que, visto isoladamente, possui relevante importância moral e, portanto, parece ser legítima sua efetivação, mas que em face do dever que teria que ser imposto a terceiros, deixa de ter importância suficiente para ser um direito.
Dito de outra forma, é necessário um constante exercício de balanceamento entre as necessidades a serem satisfeitas de um lado e os deveres impostos, de outro. Isto porque se a satisfação da necessidade de alguém se der ao custo da violação da necessidade básica de outrem, então a necessidade deste alguém talvez não possa ou não deva ser satisfeita. O mundo real está repleto deste tipo de dilemas e neste mundo real resolvê-los é tão ou mais difícil do que as técnicas empregadas para o fazer na teoria.
Na teoria há dois princípios que são empregados: os princípios da equidade e da prioridade. Para que um interesse tenha importância suficiente para impor um dever a alguém, a imposição deste dever a este alguém não pode afetar sua qualidade de vida de forma tal que ela se torne igual ou pior a do beneficiário do direito. Assim, por exemplo, se João e Maria possuem, cada um, cinco mil reais, então João não pode ter direito a dinheiro algum de Maria, pois faria dela mais pobre que João. Por outro lado, se Maria for rica e João miserável, então talvez seja devido que parte da fortuna de Maria seja distribuída para João, de modo que ele alcance um patamar mínimo de vida, enquanto ela continua mais rica que João.
O “talvez” na última sentença foi usado de forma a exprimir que, obviamente, os exemplos acima são toscos, pois ignoram a complexidade dos interesses concorrentes e das circunstâncias que se observam na vida real. Por exemplo, a razão pela qual Maria é rica e, principalmente, João miserável são fundamentais para definir se João tem algum direito ao dinheiro de Maria. E, em sociedades complexas, ou seja, reais, a satisfação da necessidade de João, que é miserável, certamente não se traduz no direito à simples transferência para ele de parte da renda de Maria – embora isso quase sempre deva ocorrer, ainda que de forma indireta. Além disso, se Maria, rica, for acometida de uma doença que coloca sua vida em risco, então é razoável que parte do dinheiro de João, pobre, contribua para um tratamento de saúde que salve Maria? Não é fácil responder a esta pergunta porque os direitos nem sempre são comparáveis, nem sempre se traduzem em pecúnia, o meio por excelência da régua de mensuração dos interesses em nossas sociedades capitalistas, ou mesmo mercantis pré-capitalistas.
Neste artigo vamos nos concentrar em direitos fundamentais, quais sejam, todos aqueles cuja importância moral é tal que recebem status constitucional, ou seja, não podem ser alterados (pelo menos não facilmente) em razão dos interesses governamentais de ocasião. Estes direitos são, na verdade, direitos prima facie. Afinal, embora tenha se decidido que devem ser satisfeitos, afinal a própria constituição está dizendo, não o serão satisfeitos sempre e em qualquer condição. Primeiro porque a satisfação de um direito pode importar na violação de outro. Na verdade, no limite, a satisfação de um direito, qualquer que seja, sempre limitará, em alguns casos até o ponto de violá-los por completo, outro(s) direito(s) de outro(s) indivíduo(s). Então, a pergunta sempre será: a necessidade que determinado direito satisfaz é tal que justifica limitar determinado(s) direito(s) de outro(s)?
Um caso prático interessantíssimo, senão controversíssimo, para efeitos do debate sobre o conflito entre direitos, diz respeito aos membros da religião (para alguns, seita) Testemunhas de Jeová (TJ) e sua reivindicação ao acesso à tratamentos de saúde alternativos ao transplante de sangue. TJ é uma religião/seita cristã restauracionista, ou seja, que reivindica o resgate ao “cristianismo primitivo” e que atualmente possui aproximadamente 8 milhões de membros no mundo todo. Os fiéis desta religião/seita acreditam que a bíblia proíbe aos cristãos aceitar transfusão de sangue, uma leitura particular deste livro, que, vale dizer, se difere da intepretação hegemônica do cristianismo. As razões, porém, são irrelevantes, senão para os membros da seita/religião, o que importa são suas consequências públicas, em termos de direitos.
Por se recusarem a aceitar transfusão de sangue, os membros da TJ reivindicam o direito ao acesso a tratamentos médicos alternativos. Em primeiro lugar, o próprio direito a se recusar à transfusão de sangue é questionável, uma vez que coloca em risco a vida, bem, em tese, indisponível. Mas admitamos como premissa hipotética que os membros da TJ têm o direito a se recusar à transfusão, preferindo, em seu lugar, tratamento algum, ainda que tal escolha tenha como consequência certa sua morte (pessoalmente, sou favorável a esta posição).
Neste caso, o direito pleiteado é negativo, ou seja, o único dever imposto a terceiros (médicos, familiares, o próprio Estado) é que o deixem morrer. Trata-se de um ônus meramente moral, embora decisões recentes da justiça brasileira tenham reconhecido o direito de os médicos realizarem a transfusão sem o consentimento do paciente, se julgarem ser o único meio para evitar a morte, julgando se tratar de estrito cumprimento do dever legal. Na verdade, mais do que um direito, agir em desconformidade com a vontade dos pacientes TJ tem sido entendido como um dever. Em situações nas quais está em jogo a decisão entre o respeito à liberdade religiosa (liberdade de consciência e de crença) e o direito à vida, o médico é obrigado a optar por salvar a vida, podendo, caso contrário, ser responsabilizado criminalmente.
Mas nem sempre o dilema consiste na escolha entre a vida e a liberdade religiosa. Na situação em que membros da TJ reivindicam tratamentos médicos alternativos, que existem e são comprovadamente eficientes, mas também são mais onerosos, o que está em jogo é uma leitura expandida (e, na minha opinião, equivocada) da noção de liberdade religiosa sob o custo da imposição da oferta de tratamentos mais caros como condição para satisfazer estes caprichos de ordem religiosa.
A fórmula de Joseph Raz se faz apropriada: Testemunhas de Jeová (X) reivindicam o direito a tratamentos alternativos e mais caros em relação a transfusão de sangue (P), custeados pelo Estado, se for realizado pelo SUS (e, indiretamente, por todos os contribuintes), ou pelos planos de saúde privados (e, indiretamente, por todos os consumidores destes planos, uma vez que as mensalidades refletirão os valores superiores do uso, por uma minoria, destes tratamentos alternativos) (Y), em razão, ou justificado pela necessidade de terem sua dignidade religiosa respeitada (Z).
O direito pleiteado, vale dizer, não é à saúde, mas sim ao privilégio de ter acesso a um tratamento de saúde diferenciado. O direito à saúde é atendido plenamente pelo emprego da técnica da transfusão de sangue, portanto, não é sobre isso que o dilema se trata. A necessidade à qual corresponde a satisfação deste direito é ter respeitada a imposição dos efeitos da leitura particular que estes pouco mais de 8 milhões de indivíduos têm sobre a bíblia, segunda a qual aceitar a transfusão de sangue fere um determinado deus ao qual prestam louvor. Tanto a bíblia como o deus sobre o qual ela prega temor deveriam ser irrelevantes para o debate público, pois são apenas crenças de ordem privada, que devem ser respeitadas como tais, mas também respeitar como tais, não sendo admissível qualquer imposição de ordem religiosa na esfera pública.
Mas, não é caso de afirmar que ter a visão particular e mística deles, testemunhas de Jeová, respeitada não possui importância alguma. Em um mundo ideal, todas as pessoas poderiam viver, se assim o desejassem, de acordo com o que manda seus deuses, verdadeiros ou imaginários, inclusive impondo estas regras divinas a todos os demais. Ocorre que esta imposição, invariavelmente, colide com os interesses dos demais indivíduos, seja porque não acreditam no mesmo deus, porque o interpretam de forma diferente ou porque não acreditam em deus algum. E, por isso, ter a liberdade religiosa respeitada não equivale, nem pode equivaler, a ter as regras confessadas pelos seus membros impostas à coletividade, tampouco a obrigação de assumir qualquer tipo de ônus em razão delas.
Com efeito, liberdade religiosa abrange dois direitos: liberdade de cultos e possibilidade de orientar-se segundo suas posições religiosas. Ou seja, um indivíduo não pode ser impedido de recusar a se submeter a um tratamento médico proibido pela sua religião, mas também não pode impor que lhe seja prescrito o tratamento que ele quiser, apenas porque seu deus, supostamente, assim o quer.
Segundo os princípios da equidade e prioridade precisamos comparar a importância do interesse das TJ com os efeitos de sua satisfação na forma de direito sobre terceiros. Embora exista alguma importância na necessidade cujo direito pleiteado visa satisfazer, é apenas comparando-o com os deveres que ele impõe que podemos reconhecer sua efetivação. Os deveres mais óbvios neste caso são o do custeio de tratamentos médicos alternativos, mais caros, concedendo um privilégio aos membros desta denominação religiosa.
Pois é exatamente o que tem ocorrido em decisões judiciais brasileiras, sob a alegação, justamente, de preservação da liberdade religiosa e, ainda, da dignidade da pessoa humana. Os tribunais brasileiros têm simplesmente ignorado os custos do atendimento deste privilégio, impondo-os inconsequentemente à coletividade. Na prática, os tribunais estão reconhecendo como direitos líquidos e certos estes que são, na verdade, direitos prima facie.
Este tipo de decisão me lembra aquela música dos Mamonas Assassinas, banda que, a partir de uma ascensão meteórica, fez um fenomenal sucesso nos anos 1990, encerrado tragicamente por um acidente de avião que matou todos seus integrantes em março de 1996. Trata-se da música “1406”, que narra, com sarcasmo, as frustrações de um trabalhador de classe média, incapaz de atender aos caprichos materiais de seus familiares. “Você não sabe como é frustrante/ Ver sua filhinha chorando por um colar de diamantes/ Cês não sabem como eu fico chateado/ Ver meu cachorro babando por um carro importado”.
Em um mundo ideal cachorros teriam sua necessidade de possuir um carro importado atendida, que seja em nome da dignidade da pessoa humana, ou melhor do cachorro canino. Não deixa de ser um direito prima facie. Porém, quando confrontado com o ônus que ele geraria sobre a sociedade, é imediatamente rejeitado, torna-se absolutamente injustificável. Ninguém achará razoável pagar impostos para comprar carros importados para cachorros. Mas, pela lógica dos tribunais brasileiros, em nome da dignidade da pessoa humana, senão no caso do carro do cachorro, mas certamente para a menininha e sua necessidade de se vestir com um colar de diamantes, o direito, em tese, se impõe.
Ainda assim, não há nenhum julgado e, provavelmente sequer uma ação peticionando o direito a um colar de diamantes. Mas há inúmeros pleiteando o direito a um tratamento médico privilegiado por razões estritamente religiosas. Por quê?
Obviamente porque os tribunais entendem, com certa razão, que a crença religiosa define uma escolha existencial, cujo valor moral é superior ao anseio de possuir um colar de diamantes e, portanto, é mais justificável sua proteção, afinal a privação do exercício desta liberdade, conforme atesta Luís Roberto Barroso, importa no sacrifício da dignidade da pessoa humana. Embora isso possa ser verdade, insisto que não se deriva necessariamente desta construção lógica a legitimidade de se impor direitos positivos com base em preferências de fundamento meramente religioso.
Quando me refiro a direitos positivos estou falando sobre aqueles direitos cujo dever imposto a terceiros não se restringe apenas a obrigação de não fazer, de não matar, de não fazer a transfusão de sangue sem o consentimento, mas também de tomar ações cuja satisfação exige práticas onerosas, como, por exemplo, a garantira de tratamentos médicos privilegiados.
Se admitirmos o direito dos adeptos da TJ a terem acesso ao tratamento médico privilegiado com base em sua crença, então, se todos são iguais perante a lei, todas as religiões, seitas e cultos também deveriam ter seus privilégios atendidos, caso contrário sua dignidade religiosa estaria sendo violada. Isso significaria um número ilimitado de almoços a serem servidos e pagos pelo Estado, em uma realidade de recursos escassos, isto é, finitos. Consiste, portanto, em uma impossibilidade e o tratamento preferencial da Testemunha de Jeová uma prática inadmissível, ao menos que aceitemos que algumas crenças possuem preferência sobre as outras, exatamente o que, infelizmente, se observa.
(1) O desembargador Vilas Boas, da 1ª Câmara Cível de Minas Gerais, por exemplo, negou agravo de instrumento perpetrado por parte da Unimed, que pretendia afastar tutela de urgência que concedeu o direito ao recebimento de medicamentos alternativos para um indivíduo que é membro da TJ, exclusivamente em razão de sua crença religiosa de que não poderia receber o tratamento padrão. O relator, em sua decisão, afirmou que “No contexto do confronto entre o postulado da dignidade humana, o direito à vida, à liberdade de consciência e de crença, é possível que aquele que professa a religião denominada Testemunhas de Jeová não seja judicialmente compelido pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimioterápico, especialmente quando existem outras técnicas alternativas a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico”. (TJMG – Agravo de Instrumento 1.0701.07.191519-6/001, Relator (a): Des.(a) Alberto Vilas Boas , 1ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 14/08/2007, publicação da sumula em 04/ 09/ 2007)
Referências
Fabre, Cécile. 2004. Social Rights Under the Constitutions – Government and the Decent Life. Oxford: Clarendon Press.
Friedman, Milton. 1977. There’s No Such Thing As a Free Lunch. La Salle: Open Court Publishing.
Raz, Joseph. 1986. The Morality of Freedom. Oxford: Clendon Press.